quarta-feira, 26 de agosto de 2015

oblíqua e dissimulada

oblíqua

I

Não sei se estou dando conta desse tanto de postagem, tem comentário que eu não vejo, tem coisa passando batida e não quero que ninguém fique chateado comigo. Mas tudo se ajeita.

Eu sei que alguém me sugeriu fazer um top livros favoritos em algum lugar (no post do tour pelo quarto?) e eu super gostei da ideia, mas me dei conta de que não leio 3 dos meus livros favoritos há tanto tempo, que nem saberia como descrevrelhos com palavras. Botei no rascunho e tô pensando como vou fazer.

Enquanto estava pensando nisso, me dei conta que até gosto de literatura nacional, mas só descobri isso já mais velha. Aí me perguntei: por quê?

Minha opinião é irrelevante, mas eu sou muito contra o esquema de leitura da escola. A pessoa com 10 anos lendo José de Alencar? Para e pensa no conteúdo desses livros. Vê se uma criança de 10 anos tem condição de compreender A Pata da Gazela. Eu lembro de ter ficado me perguntando o que raios uma criatura viu num pé enfiado numa bota pra ficar assim tão obcecado. Eu tinha PAVOR do Horácio e tinha pesadelos com o aleijão, o que ue nem vinha a saber o que era, mas imaginava ser um pé estilo Abaporu. Reflitam que uma criança de 10 anos estava lendo sobre um homem cheio de fetiche, cujo linguajar só não é mais explícito por causa de época em que foi escrito. Antes do 16, tinha lido Primo Basílio (gosto muito desse livro enquanto adulta, odiava enquanto criança, porque né?), O Cortiço, Lucíola, O Alienista, Os Ratos e uns livros de desgraça que estavam na moda do vestibular dos anos 90. 

Percebam que alguns livros ficaram fora dessa lista, porque, apesar de não serem infantis, também não acho que comprometem a infância da pessoa (a minha comprometeram, porque eu sou sensível à desgraça). Tipo Vidas Secas, Morte e Vida Severina, Memórias Póstumas de Brás Cubas, qualquer coisa do ♥Ariano Suasssuna♥, Auto da Barca do Inferno, essas coisas.

Jorge Amado minha mãe me proibiu de ler (obrigada, mãe), assim como Nelson Rodrigues. Eu faria o mesmo, se um filho em idade escolar eu tivesse. ISSO NÃO É LITERATURA JUVENIL e, se não existe literatura de qualidade pra esse público no Brasil, não é fazendo a gente ler sobre putaria disfarçada em linguagem arcaica que vai nos transformar em cidadãos cultos e amantes de leitura.

O que eu acho que crianças deveriam ler? Coleção Vaga-Lume. O Menino no Espellho, do Fernando Sabino. Monteiro Lobato, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Ruth Rocha, Ziraldo, Maria Clara Machado. 

Ahhh, mas e quando vamos ler os clássicos????

Se nosso sistema educacional servisse pra alguma coisa, na faculdade, em qualquer faculdade, a gente teria uma matéria de língua portuguesa e literatura brasileira, né? Aí cê taca os José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz nas criaturas mais preparadinhas pra entender as coisas da vida.


II

Eu nasci feminista. Sempre achei um absurdo ir na casa das minhas avós e ver que as manhãs eram consumidas por mulheres cozinhando e, depois do almoço, por mulheres limpando. Homens nem tiravam os pratos da mesa e iam confortavelmente se instalar na frente da TV ou na cama mais próxima. Por que quem lava a louça não é quem não cozinhou? Por que sempre mulheres cozinham? Por que EU tenho que ir secar louça e meu primo com a mesma idade pode ir jogar bola?

Sabe?

Sempre me arrependia de ir pra casa de uma das minhas avós, porque as mulheres mais velhas faziam o almoço pra 20 pessoas e as mais novas deveriam lavar a louça correspondente. As mais novas eram eu. Quatro mulheres pra cozinhar, várias panelas, vinte pratos, pares de talher, talher de pegar comida, copos, etc, etc, etc e uma criança de 14 anos pra lavar.

Você lavava?

Nem eu.

Meu avô falava que se eu tomasse vergonha e lavasse a louça, eu teria muito mais coisas na minha vida. Pois lavando louça eu tinha alergia nas mãos, dor nas costas e duas horas perdidas em frente a uma pia (chutando baixo) e a única coisa que eu queria era ler ou nadar na piscina. Então eu lia, nadava e escutava 3 horas de sermão até o café da tarde, quando tudo se repetia. 

Alguns dias eu pensava "hoje vou lavar a louça, porque não tô a fim de ouvir conversa". Quando todos saíam da mesa, alguém dizia "hoje a louça é sua, vaneça" (como se não fosse nos outros dias). Nesse momento, desfazia-se a mágica e eu dizia "se não tivesse mandado, eu lavaria. Já que mandou, vou subir e ler, como todo mundo".

Quantos castigos eu tive? TODOS.

Eu tive caxumba aos 19 anos. Vou deixar o contexto enterrado onde ele está, porque não vale a pena, mas eu não morava com meus pais, então essa culpa não é deles. Pois eu estava com dificuldades até de respirar e consegui ganhar um castigo porque não lavei uma louça de almoço e, olha que horror, um homem teve que lavar!!!11 Onde já se viu tanta humilhação?

Então cê reflita aí quanto eu odeio o patriarcado e a merda toda que ele fez da minha vida. 

De modos que eu jamais dividirei voluntariamente minha casa com um homem, porque uma pessoa que acha que naturalmente as funções de limpeza, culinária e ordem são minhas e que qualquer coisa que faça é digno de ganhar troféu, sair em capa de revista e receber elogio pela ajuda não merece desfrutar da minha companhia íntima. O bofe que more na sua própria casa e se vire com ela, eu moro na minha e todo mundo fica semi-feliz, porque a vida também não é essas coisa toda no geral.

III

Não citei Dom Casmurro lá em cima convenientemente. Li esse livro já um pouco mais velha, com uns 15 anos, de modos que não foi tão chocante a coisa toda do romance desequilibrado.

Como toda criança, li o livro sem imaginar o que seria esperado de mim, na hora de discutir a respeito. Quando li na prova a pergunta "Capitu traiu Bentinho?", pensei "vish, ó as ideia da professora? Claro que não traiu". 

Eu não tinha nenhuma dúvida em 1995 e permaneço não tendo nenhuma dúvida em 2015, a diferença é só que agora eu consigo argumentar com mais clareza.

Naquelas vibe que vocês já conhecem bem: isso não é um tribunal, eu não sou uma juíza e não vou ouvir argumentos dos dois lados pra tomar uma decisão, isso aqui não é uma democracia, é uma ditadura benevolente e vocês não precisam vir defender suas ideias aqui. Criem seus blogs e defendam lá.

IV

Porque eu tenho certeza de que Capitu não traiu Bentinho.

A história é contada em primeira pessoa, sob a perspectiva de um homem. Um homem muito do desequilibrado, que deveria ter tido apoio psicológico para os vários problemas que ele tem, entre eles, a mania de perseguição e a obsessão. Um homem de dois séculos pra trás (é isso? sou mei burralda), ondem nem se pensavam em direito das mulheres e coisa e tal.

Aí quem ele conhece? Uma mulher que faz o que quer, desde criança. Que não tem medo de olhar no olho, de assumir suas escolhas, de dizer o que quer. AI MEU DEUS, QUE PIRIGOZA. 

Bentinho dedica um longo tempo de narrativa pra descrever Capitu. E mesmo pela visão deturpada dele, vemos que Capitu é uma pessoa com ~bons valores~ (odeio essas expressões) e, principalmente, que só faz o que tem vontade. Então, quando Capitu resolve ficar com Bentinho, casar com Bentinho e ter um filho com Bentinho, é ISSO que ela quer. 

Mas ele, como pessoa perturbada, desequilibrada e chata, não compreende.

Tenho vontade de mandar Bentinho ler As vantagens de ser invisível. We accept the love we think we deserve. Bentinho tem sérios problemas de autoestima e não aceita que uma pessoa tão maravilhosa quanto Capitu - que salta maravilhosa aos nossos olhos, ainda que ele queira transformá-la numa pessoa menor - possa realmente querer, por vontade própria e sem coação nenhuma, passar a vida ao lado desse homem totalmente blé.

Por que existem pessoas que consideram a hipótese da traição?

Na minha opinião, a razão principal é:

o coitadismo inerente ao cerumano

Todo mundo se identifica com o coitadinho, é incrível. É preguiça? É autoconhecimento? É aceitação? Não sei porque todo mundo se vende por menos, porque todo mundo acha que é incapaz. Sei lá. Eu postei no facebook que 500 days of summer é o novo Dom Casmurro e sempre chove gente defendendo ou justificando o Tom, porque todo mundo acha que, em algum momento é o Tom. Amor, todo mundo um dia ama mais que a outra pessoa e se vê perdida, porque entendeu tudo errado. Daí a SER o Tom, como modus operandi de vida, tem que rever isso aí. Não somos todos Bentinho. Se bem que 98% dos meus ex, eram. 

Depois:

a síndrome da vagabunda

A gente já falou disso aqui essa semana. Mulher é tudo vaca. Sedutora. Infiel. Ai, meu amigo, que ano é hoje??? O tio equivocado em 1800 a gente até entende, porque todo mundo estava equivocado em 1800 (com relação às mulheres, eu digo). Mas você, hoje, culto, inteligente, morador da internet, ainda achar que porque a mulher era bonita ou bem resolvida, necessariamente ela é vadia, sem caráter, traidora, desleal, SABE? A gente tem que parar de achar que a culpa é da mulher, especialmente quando a mulher tá quieta lá e o cara está surtando dentro de sua mente.

E, finalmente,

a incapacidade de ter opinião própria

Um amiguinho seu leu e falou "fico aberto issaê, acho que essa vagabunda traiu o fofo do Bentinho, hein?". Você, que já caiu no coitadismo e na síndrome da vagabunda, pensa "é memo, viu?". E não questiona, não lê de forma crítica. Eu acredito que o autor te induz a pensar que ela traiu, porque o autor, naquele momento É o Bentinho. Só que ele criou uma personagem com vida própria, maior que ele, perdeu o controle dela (minha opinião) e aí tenta contornar a situação insinuando que era ela que não valia nada o tempo todo.

Só que não.

Pra finalizar aqui o post, eu estava dando uma olhada em resumos dos livros que citei aqui, pra não falar nenhuma bobagem grande demais (a gente lê com 12 anos e quer comentar depois dos 30) e achei um site, sem querer, quando estava confirmando que Dom Casmurro era narrado em primeira pessoa (não lembrava se era isso ou se era em terceira pessoa com perspectiva do personagem central).

Olha que bonito isso:


O romance, entretanto, presta-se a muitas leituras, e é interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.
Viu, migas? Viu? Será se Machadão era um homem à frente do seu tempo? Será se ele pensou "hummm, vamo vê quantos trôxa cairão nessa de marido traído? Jamais saberemos. Pra confirmar minha nova teoria:

Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor.
Aí agora tive um tempinho e prossegui na leitura e já quero saber quem escreveu isso, pra poder jurar amor eterno:


Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por "perturbar" a família abastada, ao casar-se com o homem rico. 

Percebe-se, por isso, o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória. 

Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.

AAHAHHAHA gente. Gente. Cêis tão percebendo que quem ficou do lado do Bentinho tem grandes chances de ter sido enganado? Eu reveria meus conceitos, se fosse vocês.

E agora vem o momento "oloco, cara, eu deveria estar estudando literatura, como era o plano e não engenharia, porque eu captei Bentinho bem demais", saca só: 


O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho. Porém, trata-se de um narrador problemático: primeiro porque o narrador é um homem emotivamente arrasado e instável; segundo porque ele narra fatos que não conhece bem, podendo ser tudo fruto de sua imaginação.

AH LOCOOOOOOO. Tô me sentindo muito inteligente neste momento, porque sempre estive do lado da Capitu maravilhosa. 

E, finalmente:
Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem.

BOOOOOOOOOOOOM. IN YO FACES.

V

Qual é a lição que tiramos disso?

- não sejam machistas;
- não sejam grudentos ou coitadinhos no amor;
- leiam sempre de forma crítica e questionem o texto, especialmente se o autor for inteligente ou se ele estiver falando sobre um assunto ~polêmico~.

Por último, eu queria dizer que esse livro foi o único momento do ensino fundamental e médio que eu não odiei a bibliografia obrigatória. Eu sempre amei ler, li Hans Christian Andersen bem pequenininha, li os originais de filmes da Disney que estão assustando pessoas no facebook antes dos 15 anos e me recusei a assistir A pequena sereia quando lançou, por medo de chorar demais no final com ela virando espuma. O que eu quero dizer que sempre fui uma criança adepta da leitura como forma de entretenimento e adoraria ter tido a oportunidade de ter lido os clássicos da literatura brasileira (ou em português) um pouco mais velha, pra não ter tanto trauma na vida. (Certeza que veio daí o pavor de me relacionar com o sexo oposto e casar. Certeza).

Se tudo der certo, em breve dica de livros bobinhos pra ler com alegria em vários momentos da vida.


dissimulada